José Saramago e os ensaios sobre as dimensões humanas
Apresentar José Saramago como o primeiro escritor de língua portuguesa a receber o Nobel de Literatura, em 1998, deixaria explícito o caráter heróico do “feito” e esconderia o que ele mais prezava quando falava da ligação entre ele os leitores: “desejo que os meus leitores me encontrem, com a confiança, deles e minha, de que lá esteja e saiba estar, não apenas o autor, mas a pessoa real, o homem que sou”. Foi o que disse durante o discurso de agradecimento, ao receber o título de Doutor Honoris Causa concedido pelo Universidade de Brasília, em 1997, um ano antes de receber o maior prêmio que qualquer escritor (a) deseja.
O homem que ele era ainda estava vinculado aos tempos difíceis da vida rural na cidade de Azinhaga, onde foi registrado com o nome do pai, José de Sousa, e o sobrenome que utilizava como escritor, Saramago, era o apelido do pai. Mas, para ele, o sobrenome adicionado pelo funcionário do cartório era apenas o nome de uma planta selvagem utilizada pelos camponeses pobres para complementar a refeição. O homem que ele era também não se esqueceu da mudança para a capital de Portugal, Lisboa, onde iniciou os estudos e passou por muitas dificuldades financeiras, tanto que só conseguiu comprar o seu primeiro livro aos 19 anos de idade, com a ajuda de um amigo.
Nesse período, Saramago terminou um curso de mecânica e trabalhou durante dois anos em uma oficina. Durante à noite começou a frequentar uma biblioteca pública de Lisboa e outra dimensão se abriu por meio das páginas dos livros, e ele era guiado apenas pela curiosidade e pelo gosto de passar horas lendo. O primeiro livro só foi escrito em 1947, mesmo ano em que sua única filha nasceu, Violante. “Terra do Pecado” abre a lista da extensa bibliografia do autor, seguido de um hiato de 19 anos, com muitos projetos abandonados pelo caminho porque ele percebeu que naquele momento não tinha nada a dizer.
Quando o leitor se torna escritor
Saramago retornou para a companhia das livros em 1950 quando começou a trabalhar em uma editora e se tornou amigo de escritores portugueses daquele período. Também atuou como tradutor e crítico literário, mas só lançou outro livro em 1966, “Os Poemas Possíveis”, que marcou sua volta definitiva ao mundo literário como autor. O jornalismo também fez parte da vida do escritor que atuou no “Diário de Notícias” até o fim do ano de 1975 quando o golpe militar liderado por fascistas e outros grupos reacionários radicais tentaram interromper o processo democrático em desenvolvimento, após o fim da Revolução dos Cravos. Como membro do Partido Comunista Português, o escritor teve dificuldades para encontrar outro emprego e resolveu se dedicar integralmente à literatura.
O retorno ao cenário rural português que remetia a infância, dessa vez, em uma vila na província do Alentejo, suscitou no escritor mais do que lembranças de um período onde a escassez forçada de livros, alimentos e bens materiais estavam na ordem do dia. Criar uma metodologia de escrita, dedicar-se diariamente para dispor as palavras em silêncios, utilizar metáforas, mesclar a imaginação com a realidade (fatos históricos), reproduzir a oralidade nas páginas dos livros, ao utilizar apenas ponto final e vírgula nos romances com a função de pausa, foram algumas das lições aprendidas nesse período de imersão para se autodescobrir escritor.
Em 1980, o romance “Levantado do Chão”, cujo título tem inspiração na canção “Levantados do Chão”, de Chico Buarque, Saramago se levanta e torna real o que talvez ele sempre soube: sua narrativa era singular e capaz de desassossegar qualquer um. Os leitores logo perceberam o “homem que ele era” e acompanharam suas publicações, inclusive os textos inéditos que foram publicados postumamente (ele faleceu no mês de junho de 2010). Escolher um livro preferido é uma tarefa árdua para os leitores do português, mas um talvez chame mais atenção do que os outros porque foi o motivo do exílio espontâneo do escritor nas Ilhas Canárias, na Espanha, até a sua morte.
Um português na Espanha
“O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, publicado em 1991, traz uma interpretação fictícia de Jesus Cristo como o protagonista de um novo testamento escrito por ele e não por um dos apóstolos. A provocação religiosa foi levada a sério pela Secretaria de Cultura Portuguesa que vetou a candidatura do livro ao Prêmio Literário Europeu. As vendas do “Evangelho” iam muito bem, ao contrário do sentimento do escritor que não estava mais à vontade para residir em Lisboa e preferiu se mudar para Lanzarote com a última esposa (Saramago se casou três vezes), a jornalista espanhola Pilar del Río.
O primeiro livro escrito em território espanhol é um dos mais marcantes da carreira do escritor e o responsável pela indicação ao Prêmio Nobel de Literatura: “Ensaios sobre a Cegueira”, publicado em 1995, expõe as contradições da espécie humana e utiliza a “cegueira” física como uma metáfora para os outros tipos de cegueiras. O livro, inclusive, foi adaptado para o cinema pelo diretor brasileiro Fernando Meirelles.
Além dos romances, o escritor produziu os “Cadernos de Lanzarote”, no formato de diário, com anotações sobre assuntos randômicos, e publicados em cinco volumes, entre os anos de 1994 e 1998. Em 2008, adaptado ao mundo “virtual”, Saramago lançou o blog “Outro Cadernos”, alimentado quase diariamente por ele com “pílulas” de temas e assuntos que povoavam sua memória e se materializavam na “página infinita da internet”, como ele chamava. O primeiro texto publicado, surpreendentemente, foi dedicado à cidade de Lisboa com o título “Palavras para uma cidade”. A carta de amor era uma “prova” para os portugueses que criticavam sua saída do país, e talvez um momento de reconciliação com as memórias, apesar de ter sido escrita “há uns quantos anos” e emocionado o autor.
“Fisicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória. Memória que é a de um espaço e de um tempo, memória no interior da qual vivemos, como uma ilha entre dois mares: um que dizemos passado, outro que dizemos futuro. (…) A minha Lisboa foi sempre a dos bairros pobres, e quando, muito mais tarde, as circunstâncias me levaram a viver noutros ambientes, a memória que preferi guardar foi a da Lisboa dos meus primeiros anos, a Lisboa da gente de pouco ter e de muito sentir, ainda rural nos costumes e na compreensão do mundo.”
Apesar das desconfianças quanto ao “homem que ele era” após ter se mudado para a Espanha, as pazes foram feitas definitivamente após a sua morte, e os seus desejos foram cumpridos fielmente pela esposa: suas cinzas foram depositadas na raiz de uma árvore trazida de sua cidade natal, Azinhaga, localizada no pátio que fica em frete à Casa dos Bicos, prédio construído no século XIV, em Lisboa. Ao lado da árvore, sem lápide, apenas uma frase do seu livro “Memorial do Convento”: “Mas não subiu às estrelas se à terra pertencia”. No prédio histórico funciona a Fundação José Saramago, criada por ele antes de sua morte, onde é possível conhecer sua trajetória como “homem” e escritor.
Apresentar José Saramago como o primeiro escritor de língua portuguesa a receber o Nobel de Literatura, em 1998, deixaria explícito o caráter heróico do “feito” e esconderia o que ele mais prezava quando falava da ligação entre ele os leitores: “desejo que os meus leitores me encontrem, com a confiança, deles e minha, de que lá esteja e saiba estar, não apenas o autor, mas a pessoa real, o homem que sou”. Foi o que disse durante o discurso de agradecimento, ao receber o título de Doutor Honoris Causa concedido pelo Universidade de Brasília, em 1997, um ano antes de receber o maior prêmio que qualquer escritor (a) deseja.
O homem que ele era ainda estava vinculado aos tempos difíceis da vida rural na cidade de Azinhaga, onde foi registrado com o nome do pai, José de Sousa, e o sobrenome que utilizava como escritor, Saramago, era o apelido do pai. Mas, para ele, o sobrenome adicionado pelo funcionário do cartório era apenas o nome de uma planta selvagem utilizada pelos camponeses pobres para complementar a refeição. O homem que ele era também não se esqueceu da mudança para a capital de Portugal, Lisboa, onde iniciou os estudos e passou por muitas dificuldades financeiras, tanto que só conseguiu comprar o seu primeiro livro aos 19 anos de idade, com a ajuda de um amigo.
Nesse período, Saramago terminou um curso de mecânica e trabalhou durante dois anos em uma oficina. Durante à noite começou a frequentar uma biblioteca pública de Lisboa e outra dimensão se abriu por meio das páginas dos livros, e ele era guiado apenas pela curiosidade e pelo gosto de passar horas lendo. O primeiro livro só foi escrito em 1947, mesmo ano em que sua única filha nasceu, Violante. “Terra do Pecado” abre a lista da extensa bibliografia do autor, seguido de um hiato de 19 anos, com muitos projetos abandonados pelo caminho porque ele percebeu que naquele momento não tinha nada a dizer.
Quando o leitor se torna escritor
Saramago retornou para a companhia das livros em 1950 quando começou a trabalhar em uma editora e se tornou amigo de escritores portugueses daquele período. Também atuou como tradutor e crítico literário, mas só lançou outro livro em 1966, “Os Poemas Possíveis”, que marcou sua volta definitiva ao mundo literário como autor. O jornalismo também fez parte da vida do escritor que atuou no “Diário de Notícias” até o fim do ano de 1975 quando o golpe militar liderado por fascistas e outros grupos reacionários radicais tentaram interromper o processo democrático em desenvolvimento, após o fim da Revolução dos Cravos. Como membro do Partido Comunista Português, o escritor teve dificuldades para encontrar outro emprego e resolveu se dedicar integralmente à literatura.
O retorno ao cenário rural português que remetia a infância, dessa vez, em uma vila na província do Alentejo, suscitou no escritor mais do que lembranças de um período onde a escassez forçada de livros, alimentos e bens materiais estavam na ordem do dia. Criar uma metodologia de escrita, dedicar-se diariamente para dispor as palavras em silêncios, utilizar metáforas, mesclar a imaginação com a realidade (fatos históricos), reproduzir a oralidade nas páginas dos livros, ao utilizar apenas ponto final e vírgula nos romances com a função de pausa, foram algumas das lições aprendidas nesse período de imersão para se autodescobrir escritor.
Em 1980, o romance “Levantado do Chão”, cujo título tem inspiração na canção “Levantados do Chão”, de Chico Buarque, Saramago se levanta e torna real o que talvez ele sempre soube: sua narrativa era singular e capaz de desassossegar qualquer um. Os leitores logo perceberam o “homem que ele era” e acompanharam suas publicações, inclusive os textos inéditos que foram publicados postumamente (ele faleceu no mês de junho de 2010). Escolher um livro preferido é uma tarefa árdua para os leitores do português, mas um talvez chame mais atenção do que os outros porque foi o motivo do exílio espontâneo do escritor nas Ilhas Canárias, na Espanha, até a sua morte.
Um português na Espanha
“O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, publicado em 1991, traz uma interpretação fictícia de Jesus Cristo como o protagonista de um novo testamento escrito por ele e não por um dos apóstolos. A provocação religiosa foi levada a sério pela Secretaria de Cultura Portuguesa que vetou a candidatura do livro ao Prêmio Literário Europeu. As vendas do “Evangelho” iam muito bem, ao contrário do sentimento do escritor que não estava mais à vontade para residir em Lisboa e preferiu se mudar para Lanzarote com a última esposa (Saramago se casou três vezes), a jornalista espanhola Pilar del Río.
O primeiro livro escrito em território espanhol é um dos mais marcantes da carreira do escritor e o responsável pela indicação ao Prêmio Nobel de Literatura: “Ensaios sobre a Cegueira”, publicado em 1995, expõe as contradições da espécie humana e utiliza a “cegueira” física como uma metáfora para os outros tipos de cegueiras. O livro, inclusive, foi adaptado para o cinema pelo diretor brasileiro Fernando Meirelles.
Além dos romances, o escritor produziu os “Cadernos de Lanzarote”, no formato de diário, com anotações sobre assuntos randômicos, e publicados em cinco volumes, entre os anos de 1994 e 1998. Em 2008, adaptado ao mundo “virtual”, Saramago lançou o blog “Outro Cadernos”, alimentado quase diariamente por ele com “pílulas” de temas e assuntos que povoavam sua memória e se materializavam na “página infinita da internet”, como ele chamava. O primeiro texto publicado, surpreendentemente, foi dedicado à cidade de Lisboa com o título “Palavras para uma cidade”. A carta de amor era uma “prova” para os portugueses que criticavam sua saída do país, e talvez um momento de reconciliação com as memórias, apesar de ter sido escrita “há uns quantos anos” e emocionado o autor.
“Fisicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória. Memória que é a de um espaço e de um tempo, memória no interior da qual vivemos, como uma ilha entre dois mares: um que dizemos passado, outro que dizemos futuro. (…) A minha Lisboa foi sempre a dos bairros pobres, e quando, muito mais tarde, as circunstâncias me levaram a viver noutros ambientes, a memória que preferi guardar foi a da Lisboa dos meus primeiros anos, a Lisboa da gente de pouco ter e de muito sentir, ainda rural nos costumes e na compreensão do mundo.”
Apesar das desconfianças quanto ao “homem que ele era” após ter se mudado para a Espanha, as pazes foram feitas definitivamente após a sua morte, e os seus desejos foram cumpridos fielmente pela esposa: suas cinzas foram depositadas na raiz de uma árvore trazida de sua cidade natal, Azinhaga, localizada no pátio que fica em frete à Casa dos Bicos, prédio construído no século XIV, em Lisboa. Ao lado da árvore, sem lápide, apenas uma frase do seu livro “Memorial do Convento”: “Mas não subiu às estrelas se à terra pertencia”. No prédio histórico funciona a Fundação José Saramago, criada por ele antes de sua morte, onde é possível conhecer sua trajetória como “homem” e escritor.
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