Servidora do TRT3 escreve artigo com reflexões e canções
Como é possível, mesmo que não sejamos poetas, tentar reinventar a vida?
É com esse questionamento que a servidora Anete Araujo Guedes, do TRT3, faz uma viagem no tempo por meio de reflexões e canções.
Este é um texto repleto de melodias, publicado na Revista do TRT3, que nos leva à reconhecer a arte e a inspiração dos colegas da Justiça do Trabalho. Boa leitura!
Um tempo que se anuncia como possibilidade
*Anete Araujo Guedes
Nos últimos tempos estiveram aqui em BH, entre outros, Ivan Lins, João Bosco, Paulinho da Viola e Edu Lobo. Durante o show, como quase sempre acontece, as antigas canções foram rememoradas e recebidas com muitos aplausos pelo público.
O interessante foi pensar que, mesmo que fossem as mesmas melodias, tantas vezes cantadas no passado e nos tempos atuais, os arranjos eram bem outros, diria que, mais apurados. Assim também foi, na minha opinião, o tom das vozes, que se tornou mais suave, quem sabe mais tranquilo, denunciando, talvez, um outro tempo… Um tempo em que alguns conseguem ir além e, por isso mesmo, adicionam em sua experiência de vida a leveza, o despojamento, o bom humor, a alegria de viver e amar.
“E há sempre uma canção para contar/ Aquela velha história de um desejo/ que todas as canções têm pra contar…”, dizia o Tom Jobim em um de seus poemas.
Um tempo outro que possa ser pensado em sua desvinculação com a temporalidade, que não é medido ou contado em concordância com o calendário. É o que se encontra num mais além. O que não é pontuado como passado, presente ou futuro.
Não por acaso, esses compositores vivenciaram no passado uma época em que o Brasil permaneceu interditado, por longos anos, no regime ditatorial. Anos em que a rigidez, as restrições, a violência, se impuseram tendo como efeito a ausência de liberdade de ação, pensamento e expressão. Como era difícil acordar calado, nesse silêncio servindo de amém.
Já nesse tempo, eles foram capazes de se posicionar, não à direita ou à esquerda, mas além dos acontecimentos. Deram ao que se perdeu um outro rumo. Seguiram a via da musicalidade, da rima, da poesia. Em vez de se armarem contra o que se impunha com truculência, produziram e cantaram os seus versos em prol dos sonhos, dos desejos, da liberdade de escolha e da dignidade humana.
“Como vai proibir/Quando o galo insistir em cantar?/Água nova brotando…”, rompendo, surgindo, apesar de você. Versos embalados, engabelados na melodia do Chico Buarque.
Os afetos, os sonhos, a singularidade do sujeito não foram feitos para serem suprimidos, são representações que o representam, daí a impossibilidade de recusar-lhes a expressão, aprisioná-los, negar-lhes a palavra. Em vez da recusa do que o apresenta, necessário será dar-lhes passagem, para que haja aí um escoamento, uma saída, evitando, assim, o risco da fúria, da explosão.
O sujeito, como na função gramatical, é o que se encontra submetido à linguagem. Um dizer que o faz escorregar, tropeçar, esquecer, trocar uma palavra pela outra. Que o faz dizer sempre mais ou sempre menos, mas não o que realmente necessita dizer. É o que o leva supor que não é senhor nem da sua própria fala. Sujeito que surge na falha, nas entrelinhas, entre o um dito e outro, pronto para ser escutado.
“Como beber dessa bebida amarga?/Tragar a dor e engolir a labuta?/Mesmo calada a boca resta o peito…”, cantava Chico Buarque, numa tentativa de ser escutado.
Nos dias atuais, mesmo que as melodias sejam as mesmas cantadas em outras épocas, ainda assim, houve a possibilidade de dar-lhes um outro arranjo, para que fosse possível celebrar um outro cantar.
Como é possível, mesmo que não sejamos poetas, tentar reinventar a vida? Reinventar, mas sem aquela ilusória ou aparente sensação de que mudamos devido ao fato de encontramos diante de outros personagens ou de outro cenário. Quando na verdade, estamos fixados, retidos em um mesmo ponto, reproduzindo continuamente, insistentemente, o que não há possibilidade de ser recordado, por ter sido anteriormente rechaçado, negado. É o que se encontra sob a barra do recalque, por ter sido suprimido do pensamento, portanto, excluído da simbolização. Um fora que resiste, insiste em marcar presença, que angustia e causa mal-estar.
O que nos impele na reprodução incessante do mesmo? O que nos impossibilita de avançar para deixar fruir um outro tempo?
Na formação do psiquismo, o que se apresentou para o sujeito como insuportável, o que não foi possível integrar a sua história, passa por um processo de recalcamento: “disso não quero saber”. Esse não sabido, ao se encontrar escamoteado, impedido de ser simbolizado, instaura a impossibilidade de ser rememorado. Só lhe resta então uma saída, manifestar-se em surdina, dissimulado no pensamento, no ato, no sonho, na fala, na fantasia, provocando sempre a repetição constante e traiçoeira do mesmo. É o que não cessa de tentar forçar uma entrada sorrateira na consciência. O que marca presença, ao deixar-se repercutir na realidade. É o que é sentido e vivido como uma fatalidade, como a força implacável do destino.
O que é negado marca sempre presença, com a aparência de algo renovado, atualizado, mas que, na essência, permanece sempre o mesmo. O que fica fora, o que não se apresenta, retorna, ressurge, ressoa cada vez mais com força redobrada, à revelia do sujeito. Quem sabe uma antiga canção de Belchior poderia nos aproximar mais do que não tem sentido, nem nunca terá?
“Minha dor é perceber/Que apesar de termos/Feito tudo o que fizemos/Ainda somos os mesmos/E vivemos/Como os nossos pais…”
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