A arte de contar com palavras o que o coração sente
Se o coração soubesse todas as coisas pelas quais iria passar, desejaria parar no tempo e não prosseguir mais; pediria pra não crescer e continuar pra sempre criança; os dias seriam mais tranqüilos; a brisa do vento bateria tão mais suavemente no rosto e seria infinitamente mais prazerosa…
Amores, dissabores, complexidades, relacionamentos e crescimento interior são algumas das características que permeiam os textos do servidor do TRT São Paulo, Roberson dos Santos, que já teve outros textos publicados no Espaço Cultural.
Ele revela que seu grande prazer é escrever, de preferência, contos ao invés de poemas. Escrever, segundo Roberson, é um ato “desafiador, estimulante, prazeroso e doloroso”.
Dessa vez, o servidor compartilha conosco o conto “O Canto da Cigarra”, que, juntamente com outros textos do autor, foi publicado em sua obra “Quotidianos”.
Mais:
A arte de amar, desamr e escrever de Roberson dos Santos
“O verbo amaar”, mais uma poesia de Roberson dos Santos
Mais sobre o amor, por Roberson dos Santos
“O ponto”, por Roberson dos Santos
“O canto da cigarra”
Por Roberson dos Santos
Se o coração soubesse todas as coisas pelas quais iria passar, desejaria parar no tempo e não prosseguir mais; pediria pra não crescer e continuar pra sempre criança; os dias seriam mais tranqüilos; a brisa do vento bateria tão mais suavemente no rosto e seria infinitamente mais prazerosa; o profundo suspirar viria de saborosas sensações, trazendo completo bem- estar à alma que encher-se-ia de júbilo diariamente se, tão- somente, o coração pudesse parar no tempo de criança e assim, pra sempre, ficar; as correntes daquele rio vinham parar naquele riozinho onde o Danielzinho colocava um de seus pés naquela água fria, fria…mas gostosa…
…contudo…porém…todavia…o tempo passou…o Danielzinho tornou-se Danielzão; e tudo o que era pequeno ficou grande…complexo…complicado…as águas do rio já não são tão refrescantes assim e a brisa do vento bate com um peso que denuncia culpas e mais peso, enfim; a lembrança do passado já não é mais tão nítida assim…é opaca e confusa…embora ele guarde na memória da alma cada momento vivido na infância; esse relembrar é que lhe traz uma certa tranqüilidade; inda mais porque sua infância foi interiorana, onde o cantar de cada pássaro tinha um significado especial pro seu coração; assim como o colher das frutas direto ao pé de cada uma; logo pela manhã, aqueles pássaros cantando e em bandos voando, dialogando entre si num diálogo sinfônico perfeitamente harmonioso aos ouvidos e coração da alma humana; numa bela tarde (porque o belo ali abundava em cada coisa), estava Daniel sentado ao pé de uma jabuticabeira e, pelo que parece, enquanto não viu o fim das jabuticabas, não parou de comê-las: degustou todas, uma a uma; e ali, tirou uma soneca, na total, completa, inteira integralização com tudo o que ali havia: a jabuticabeira, o chão de terra, as folhas das árvores batendo umas nas outras e emitindo agradabilíssimo som que mesclava- se ao som de insetos a caminhar pelo chão sobre folhas secas, os pássaros a voar e a cantar e a pousar sobre os galhos das árvores, a brisa tão suave e refrescante passando por ali e o som das águas correntes do riozinho bem ao lado; sabe o que é isso? é estar nos céus e nem saber; só estar…ficar…regozijar-se…encontrando o real sentido, a razão, o porquê do mundo existir e estarmos inseridos nele; porque fomos criados pra isso: desfrutar da criação; desfrutar de nós mesmos e de toda a criação; desfrutar no sentido de conviver harmoniosa e pacificamente, na quietude que traz o completo conhecimento de se estar vivo e a sabedoria da razão de se viver; isso tudo o Danielzinho já possuía, mas ele nem sabia; só desfrutava; e a gente também não sabe; e também não desfruta; ele se enfiava naquele riozinho de águas límpidas, águas claras da mais pura fonte, dava um ai de alegre arrepio, deixando as águas correrem pelo seu corpo deitado sobre as pedrinhas diariamente molhadas e queimadas pelos fortes raios solares; e Danielzinho voltava pretinho, pretinho pra casa; “vai pegar insolação, menino!”, dizia sua mãe; mas ele bebia da pura fonte; lavava o rosto com ela e bebia a sua água; quando o Danielzinho cortava o cabelo lá no seu Alcino, o barbeiro da cidadezinha, ele não ia pra casa tirar o penicar debaixo do chuveiro não: ele ia era pro açude da cidadezinha e lá, todo e qualquer penicar saía debaixo daquela cachoeira que fazia valer a vida; ali, ele deleitava-se: pulava, corria e se entregava nas águas do rio como se entregasse nos braços de Cristo tamanho o prazer por estar ali; aquele mundo era uma imensa floresta onde tudo do que a alma necessitava estava nela, naquela divina floresta; a coloração da vida era a mais viva coloração que só ali existia; o cheiro de cada coisa exalava o mais puro e autêntico estado delas: era um aroma agradabilíssimo que embelezava a alma da alma; ia profundo; tocava profundamente; coisa alguma era superficial porque tudo revelava-se em sua totalidade, em sua plenitude; e isso é que era o melhor de tudo e por isso era divino: por ser a totalidade e a plenitude do belo em toda sua pureza e integridade; parece que morri, fui pro Céu e estou descrevendo como é o Céu; mas então eu já conheço o Céu porque ainda não morri e o Céu existe onde o Danielzão passou a sua infância; a tranqüilidade da noite naquele lugar é uma tranqüilidade abençoadora que traz equilíbrio e bem-estar à mente, ao corpo, à alma, ao espírito, a todo ser que vive e respira; ouvir os grilos cantando nas noites de paz daquele lugar é uma dádiva, um privilégio que o Danielzinho compartilhou e vivenciou nas noites de sua infância; havia tempestades também, é claro; mas a chuva enchia a terra e o cheiro de terra molhada com o cheiro das folhas molhadas das árvores molhadas era o cheiro que comprovava perfeita harmonia, perfeito equilíbrio com tudo ali, pra despertar um novo dia anunciando, mais uma vez, a prazerosa sinfonia da passarada; da passarada passada no passado distante…não que a passarada não exista mais…não que toda aquela harmonia e toda aquela paz não existam mais…estão tornando- se cada vez mais raras…mas ainda existe sim…o Danielzinho é quem não existe mais…agora, só o Danielzão…não mais ali…naquele paraíso divino…
…santificado e santificador…abençoado e abençoador…
…outro dia, o Danielzão estava deitado, era já noite…e ouviu o canto de uma cigarra que o remeteu a todas essas lembranças e à lembrança de sua mãe dizendo: “vai pegar insolação, menino!”; ele desejou dormir profundamente e sonhar com tudo aquilo…certa vez, o sino da igrejinha daquela cidadezinha tocava e, quando parou de tocar, o Danielzinho ouviu o som da cigarra cantando na árvore que ficava bem em frente à janela de seu quarto…o sino da igrejinha ainda toca…o quarto do Daniel ainda está lá…a árvore ainda permanece em frente à janela de seu quarto…e a cigarra ainda canta…
Acessos: 0