Parlamentar

Reforma administrativa na Europa: retração do Estado impacta negativamente

12/07/2021 14:13 | Fonte: Estadão

Artigo fala sobre o impacto da reforma administrativa em países da Europa.

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José Celso Cardoso Jr., presidente da Afipea-Sindical e Regina Coeli Moreira Camargos, Doutora em Ciência Política (FAFICH/ UFMG), Pesquisadora em pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Econômico (CESIT/IE/Unicamp).  - ANAJUSTRA Federal José Celso Cardoso Jr., presidente da Afipea-Sindical e Regina Coeli Moreira Camargos, Doutora em Ciência Política (FAFICH/ UFMG), Pesquisadora em pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Econômico (CESIT/IE/Unicamp). - ANAJUSTRA Federal

Diante do vendaval de fake news e ameaças aos servidores públicos propagados pelo governo Bolsonaro/Guedes e defensores, acerca das supostas – e irreais – vantagens da PEC 32/2020, resolvemos mapear evidências acerca dos impactos de reformas administrativas de mesma inspiração e já em implementação em países da União Europeia desde a crise financeira internacional de 2008, cujos desdobramentos seguem em curso.

Para tanto, apresentamos nesse artigo um resumo – não exaustivo, mas suficiente – das principais conclusões do livro Public Sector Shock. The impact of policy retrenchment in Europe, organizado por Daniel Vaughan-Whitehead, economista sênior da OIT (Organização Internacional do Trabalho). A publicação descreve em profundidade as características e principais efeitos das reformas administrativas que ocorreram em diversos países da União Europeia a partir da referida crise. A partir do título o leitor antevê o que encontrará em suas mais de 600 páginas.

Nos países mais desenvolvidos da Europa, observou-se aprofundamento da retração do Estado na prestação de serviços à sociedade, algo que já vem ocorrendo desde o fim dos anos 1970. Mas, nos países menos desenvolvidos e na periferia do capitalismo europeu, houve reformas abruptas, que num curto espaço de tempo, modificaram substancialmente ou mesmo extinguiram diversas estruturas do Estado em áreas centrais dos respectivos sistemas de bem-estar social. Em uns e noutros casos observaram-se alterações qualitativas e quantitativas para pior no atendimento do Estado às demandas sociais em áreas como educação, saúde, segurança pública e sistemas de intermediação de emprego. Além disso, em todos os casos, houve redução no quadro de servidores, piora nas condições de trabalho e precarização das formas de contratação, demissão e remuneração. Em suma, observou-se generalizado aumento da desproteção social e da insegurança laboral no setor público em todos os países.

As reformas – abrangentes, profundas e velozes – ocorreram por meio de cortes lineares e indiscriminados no orçamento, visando conter ou reduzir o déficit público, e resultaram no congelamento do investimento governamental em áreas como previdência, saúde e educação, além de demissões e cortes na remuneração dos servidores. As reformas são abrangentes, pois envolvem e afetam uma ampla gama dentre as principais áreas de atuação governamental. São profundas, já que promovem modificações paradigmáticas, e não apenas paramétricas, nos modos de organização e funcionamento das respectivas áreas. E são velozes, pois estão ocorrendo em ritmo tal que setores oposicionistas e mesmo analistas especializados mal conseguem acompanhar o sentido mais geral das mudanças em curso, as quais apontam em direção ao enfraquecimento da democracia e ampliação das desigualdades sociais.

De acordo com Daniel Vaughan-Whitehead, cada programa teve características e ritmo próprio de aplicação, sendo mais radicais nos países menos desenvolvidos da União Europeia. Alguns programas foram diretamente impostos aos governos de países como Grécia, Portugal e do leste do continente pela chamada Troika, organismo formado pelo Banco Central Europeu, FMI e Comissão Europeia. Nesses países, o teor das reformas do setor público foi nitidamente fiscalista e privatista ou, nos termos do autor, limitaram-se a ajustes quantitativos, à transferência de ativos e da gestão de órgãos públicos para empresas e entidades do setor privado. Por sua vez, os países que vinham implantando reformas de caráter mais estrutural desde os anos 1980, como Alemanha, Suécia, Reino Unido e França, aprofundaram o ajuste quantitativo do setor público e a privatização dos seus respectivos sistemas de proteção social, embora tentando manter alguma regulação estatal sobre eles para mitigar a diminuição da coberta e da qualidade do atendimento às demandas da sociedade por serviços essenciais.

Na avaliação do autor, mesmo os países que fizeram reformas menos fiscalistas e privatistas não obtiveram resultados virtuosos. A médio e longo prazos, os sucessivos cortes orçamentários, a gradativa precarização das condições de trabalho dos servidores, o recurso indiscriminado ao outsourcing e às parcerias com a iniciativa privada para realização de atividades essenciais, dentre outros fatores, resultaram em custos muito elevados, tais como o aumento das desigualdades e a redução do dinamismo econômico.

Obviamente, os países menos desenvolvidos que fizeram ajustes ainda mais severos – por imposição de organismos internacionais – colheram resultados muito piores, pois, em geral, suas estruturas econômicas e seus sistemas de bem-estar eram menos robustos que os dos países mais desenvolvidos. Mas, em ambos os casos, como tais reformas aconteceram em contextos desfavoráveis, caracterizados por altas taxas de desemprego e baixo dinamismo econômico, acabaram contribuindo para agravar os problemas já existentes.

Dentre as principais consequências desse tipo de reformas administrativas se destacam: i) Aumento dos conflitos trabalhistas no setor público; ii) Achatamento salarial nos níveis hierárquicos mais elevados da administração pública, o que tem levado a uma onda de aposentadorias precoces e desligamentos voluntários de profissionais mais qualificados; iii) Redução expressiva das diferenças salariais entre servidores de carreira e funcionários das prestadoras de serviços e organizações sociais nos níveis hierárquicos menos graduados da administração pública, em detrimento dos primeiros, o que tem gerado desmotivação e queda na produtividade sistêmica; iv) Substituição gradativa, mas contínua, de servidores com contratos a prazo indeterminado por outros com contratos temporários e a tempo parcial; v) Aumento das desigualdades salariais de gênero, pois os cortes e congelamentos de salários, benefícios e promoções afetaram sobremaneira as categorias funcionais com maior participação de mulheres, como saúde, educação e serviços de assistência social; vi) Queda na qualidade dos serviços públicos oferecidos à população, devido ao rebaixamento das condições de trabalho dos servidores, aumento das jornadas de trabalho, demissões e aposentadorias precoces, congelamento das promoções e progressões funcionais e redução dos investimentos em infraestrutura, qualificação e treinamento; vii) As reformas fiscalistas do setor público foram frequentemente acompanhadas por campanhas de desqualificação dos servidores, imputando-lhes privilégios inaceitáveis num contexto de crise geral do mercado de trabalho; viii) O rebaixamento salarial e das condições de trabalho no setor público está prejudicando a luta por direitos trabalhistas na iniciativa privada, pois o estatuto de proteção social ao trabalho no Estado sempre foi uma referência importante para o sindicalismo no setor privado; ix) O rebaixamento das condições de trabalho de servidores públicos mais qualificados no leste europeu está estimulando movimentos migratórios desses profissionais para países mais desenvolvidos do continente; e x) Na maioria dos países, as reformas foram realizadas sem qualquer negociação com servidores e demais segmentos da sociedade afetados por elas, exceção feita àqueles que tinham práticas mais longevas e consolidadas de diálogo social. Ademais, observaram-se restrições ao direito de greve e de negociação coletiva que resultaram em intensificação dos conflitos trabalhistas e queda nas taxas de sindicalização no setor público.

Portanto, tudo somado, ao contrário do argumento disseminado pelos defensores das reformas e ajustes, inclusive a OCDE, esses processos não resultaram em aumento da eficiência (e muito menos ainda da eficácia e efetividade) dos serviços prestados pelo Estado. Na realidade, em diversos casos, levaram à queda do desempenho do conjunto do setor público e da qualidade dos serviços. O autor também menciona que os cortes no investimento público em áreas como tecnologia da informação, segurança e sistemas de justiça estão levando, respectivamente, à fragilização dos sistemas nacionais de estatísticas, ao aumento da violência e da corrupção endêmica.

Para Daniel Vaughan-Whitehead, qualquer reforma do setor público deveria ser precedida de minuciosa análise sobre o desempenho da economia e do setor público num longo período de tempo, bem como de projeções de resultados a longo prazo acerca de seus custos e benefícios. Isso porque reformas fiscalistas e privatistas podem até trazer resultados fiscais vistosos no curto prazo, mas costumam ensejar consequências socioeconômicas danosas, dificilmente reversíveis a médio e longo prazos.

Além disso, reformas dessa natureza requerem a existência de estruturas institucionais sólidas, constituídas por diversos órgãos e agências do Estado, que devem subsidiar os responsáveis pela implementação das reformas com informações, dados e análises para que a tomada de decisões se baseie em evidências e critérios objetivos e vise a melhoria das condições de vida dos cidadãos e o estímulo ao desenvolvimento econômico.

Também é desejável que as reformas sejam acompanhadas e avaliadas por organizações da sociedade civil, sindicatos de servidores, conselhos de usuários e concessionários de serviços públicos. Ou seja, uma reforma virtuosa do setor público deveria ter o diálogo social permanente como princípio e meio de realização, pois tende a afetar as condições de vida de milhares de pessoas.

Em síntese, após analisar os resultados das reformas administrativas ocorridas em 15 países da União Europeia desde a crise de 2008, Daniel Vaughan-Whitehead sugere uma proposta diferente para reformar o setor público, baseada nas seguintes premissas: i) Incrementalismo, evitando-se mudanças abruptas e disruptivas; ii) Diálogo social permanente; iii) Reformar com base em evidências, no planejamento, monitoramento e avaliação permanentes; iv) Fortalecimento do Estado Social; e v) Revisão profunda da teoria e política econômica dominante, notadamente no que se refere ao peso e papel das finanças públicas no processo de financiamento do desenvolvimento nacional em cada caso concreto.

Como se vê, há semelhanças inegáveis entre o desenho da PEC 32/2020, ora em tramitação apressada, e as reformas administrativas de cunho neoliberal implementadas recentemente na União Europeia. Nada garante que os maus resultados ali observados não sejam aqui replicados, com o agravante de que, no Brasil, pretende-se desmontar estruturas estatais que sequer haviam sido plenamente implantadas desde a reforma administrativa republicana e democrática sugerida pela Constituição Federal de 1988.

Finalmente, a PEC 32/2020 causará enormes danos ao funcionalismo público, cuja maioria é representada por servidores de carreira selecionados mediante concursos que exigem formação educacional mais consistente. Um quadro funcional bem preparado, com dignas condições de trabalho e em constante profissionalização é, por sua vez, condição necessária para um atendimento eficiente e qualificado aos cidadãos.

Tal como em relação a outros temas da agenda econômica e social, sugerimos cautela extrema com a importação de ideias e modelos estrangeiros de reforma administrativa, claramente fadados ao fracasso em países tão heterogêneos e desiguais como o Brasil.

[1] VAUGHAN-WHITEHEAD, DANIEL (org.). Public Sector Shock: the impact of policy retrenchment in Europe. Co-edição OIT e Editora Cheltenham (UK/ USA), 2013. Ver também CAMARGOS, REGINA C. M. Reformas Administrativas no Brasil e no Mundo: revisão bibliográfica sugere cautela extrema com a importação de ideias e modelos estrangeiros. Brasília: Cadernos da Reforma Administrativa n. 18, Fonacate, 2021.

Autores do artigo

Regina Coeli Moreira Camargos, Doutora em Ciência Política (FAFICH/ UFMG), Pesquisadora em pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Econômico (CESIT/IE/Unicamp). Economista do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) entre 1993 a 2018

José Celso Cardoso Jr., Doutor em economia (IE-Unicamp). Desde 1997, é Técnico de Planejamento e Pesquisa do Ipea. Atualmente, exerce a função de Presidente da Afipea-Sindical e nessa condição escreve esse texto