A questão da Estabilidade Funcional dos Servidores nos Cargos Públicos

Parte 2 da série sobre cinco fundamentos históricos da ocupação no setor público.

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(1) José Celso Cardoso Jr.

Como anunciado em artigo anterior que abre essa série, há cinco fundamentos históricos da ocupação no setor público, presentes em maior ou menor medida nos Estados nacionais contemporâneos, que precisam ser levados em consideração para uma boa estrutura de governança e por incentivos corretos à produtividade e a um desempenho institucional satisfatório ao longo do tempo. São eles:

i) estabilidade na ocupação, idealmente conquistada por critérios meritocráticos em ambiente geral de homogeneidade econômica, republicanismo político e democracia social, visando a proteção contra arbitrariedades – inclusive político-partidárias – cometidas pelo Estado-empregador;

LEIA TAMBÉM:

Parte 1: Fundamentos e Diretrizes da Ocupação no Setor Público no Brasil – parte 1

Parte 3: A questão da remuneração adequada e previsível ao longo do ciclo laboral 

Parte 4: As questões da qualificação elevada, da capacitação permanente e da meritocracia no âmbito das funções, cargos e organizações estatais

Parte 5: A questão da cooperação – ao invés da competição – como método de trabalho e fonte de inovação, produtividade e efetividade das ações governamentais 

Parte 6: Fundamentos e Diretrizes da Ocupação no Setor Público no Brasil:
a questão da liberdade e autonomia associativa e sindical

ii) remuneração adequada e previsível ao longo do ciclo laboral;

iii) qualificação elevada e capacitação permanente no âmbito das funções precípuas dos respectivos cargos e organizações;

iv) cooperação – ao invés da competição – interpessoal e intra/inter organizações como critério de atuação e método primordial de trabalho no setor público; e

v) liberdade de organização e autonomia de atuação sindical.

Diante da amplitude e complexidade de cada um dos temas, abordaremos nessa série de cinco artigos, um a um dos principais fundamentos acima listados, apontando as diretrizes gerais que deveriam organizar cada assunto no âmbito do setor público federal brasileiro.

Começando pelo tema da estabilidade funcional dos servidores nos cargos públicos, é preciso ter claro que ela remonta a uma época na qual os Estados nacionais, ainda em formação, precisaram, para sua própria existência e perpetuação (isto é, consolidação interna e legitimação externa) transitar da situação de recrutamento mercenário e esporádico para uma situação de recrutamento, remuneração, capacitação e cooperação junto ao seu corpo funcional. Este, gradativamente, foi deixando de estar submetido exclusivamente às ordens feudais e reais, para assumir, crescentemente, funções estatais permanentes e previsíveis em tarefas ligadas, portanto, às chamadas funções inerentes dos Estados capitalistas modernos e contemporâneos.

Tais funções, fundantes dos Estados atuais, e posteriormente outras funções derivadas das novas, complexas e abrangentes áreas de atuação governamental da modernidade, as quais foram surgindo e exigindo respostas tão estruturadas quanto possíveis da coletividade e seus respectivos governos, sejam finalísticas, tais como no campo das políticas sociais, econômicas e de desenvolvimento territorial, setorial e produtivo, financeiro, regulatório, ambiental etc., como aquelas tipicamente administrativas, dentre as quais as de orçamentação, planejamento, gestão, regulação, controle etc., estão todas dotadas desse mesmo atributo original e essencial, qual seja, o da indispensabilidade da estabilidade do corpo funcional do Estado como forma de garantia da provisão permanente e previsível das respectivas funções junto ao próprio ente estatal, nos territórios sob suas jurisdições e suas populações.

Olhando da perspectiva histórica, Prazeres (mimeo, s/d), esclarece que: “Este modelo possui como princípios a profissionalização, a organização dos servidores em carreira, a hierarquia funcional, a impessoalidade e o formalismo. Este tipo de administração pública foi desenvolvido com o objetivo de distinguir o público do privado e, também, separar o político do administrador.” (s/pg).  E complementa Silva (mimeo, s/d): “O Princípio da Estabilidade nasceu nos Estados Unidos para barrar um costume desumano e imoral, sem contar o fato de que bania completamente a democracia da Administração Pública, em virtude da usual e costumeira troca de governantes no Poder Público de partidos políticos influentes, os Democratas e os Republicanos. Diante desse panorama antidemocrático em que viviam os cidadãos estadunidenses, onde os servidores eram sumariamente demitidos, quando considerados contrários ou desnecessários ao atual governo que buscava se cercar apenas de seus partidários. Tais atitudes causavam total desalinhamento na prestação do serviço público, afetando a credibilidade do governo, e causando injustiças tanto aos servidores quanto aos administrados. Dessa forma, buscando atender ao interesse coletivo idealizou-se o instituto da estabilidade, almejando alcançar proteção aos cidadãos na prestação das atividades essenciais da Administração.” No Brasil, consolidou-se a estabilidade do servidor público com a Lei nº 2.924 de 1915. Constitucionalmente, a estabilidade foi recepcionada em 1934, e de lá para cá tem sido mantida em todas as Constituições, até na ainda vigente de 1988 (2).

O inverso disso, ou seja, o receituário liberal-gerencialista em defesa da flexibilidade quantitativa como norma geral, por meio da possibilidade de contratações e demissões rápidas e fáceis no setor público, insere os princípios da rotatividade e da insegurança radical não apenas para os servidores, que pessoalmente apostaram no emprego público como estratégia e trajetória de realização profissional, como também introduz a insegurança na sociedade e no mercado pelas dúvidas e incertezas na capacidade do Estado em manter a provisão de bens e serviços públicos de forma permanente e previsível ao longo do tempo. Portanto, permanência e previsibilidade são duas características fundamentais das políticas públicas e da própria razão de existência e legitimação política do Estado, algo que apenas pode estar assegurado por meio da garantia da estabilidade e da proteção do seu corpo funcional, além de outros fatores.

Diante do exposto, entende-se melhor porque é que a ocupação no setor público veio, historicamente, adotando e assumindo a forma meritocrática como critério fundamental de seleção e acesso, mediante concursos públicos e sob a guarida de um regime estatutário e jurídico único (RJU), como no caso brasileiro desde a CF-1988. Sabemos que o critério weberiano-meritocrático de seleção de quadros permanentes e bem capacitados (técnica, emocional e moralmente) para o Estado depende de condições objetivas ainda longe das realmente vigentes no Brasil, quais sejam: ambiente geral de homogeneidade socioeconômica, republicanismo político e democracia social.

O ambiente geral de homogeneidade econômica e social é condição necessária para permitir que todas as pessoas aptas e interessadas em adentrar e trilhar uma carreira pública qualquer, possam disputar, em máxima igualdade possível de condições, as vagas disponíveis mediante concursos públicos, plenamente abertos e acessíveis a todas as pessoas aptas e interessadas. Por sua vez, o republicanismo político e a democracia social implicam o estabelecimento de plenas e igualitárias informações e condições de acesso e disputa, não sendo concebível nenhum tipo de direcionamento político-ideológico nem favorecimento pessoal algum, exceto para aqueles casos (como as cotas para pessoas portadoras de deficiências ou necessidades especiais, e as cotas para gênero e raça) em que o objetivo é justamente compensar a ausência ou precariedade histórica de homogeneidade econômica e social entre os candidatos a cargos públicos. 

Apenas diante de tais condições é que, idealmente, o critério meritocrático conseguiria recrutar as pessoas mais adequadas (técnica, emocional e moralmente), sem viés dominante ou decisivo de renda, da posição social e/ou da herança familiar ou influência política. De todo modo, mesmo assim se evita, justamente, que sob qualquer tipo de comando tirânico ou despótico (ainda que “esclarecido”!), se produza qualquer tipo de partidarização ou aparelhamento absoluto do Estado. No caso brasileiro, sob as regras vigentes desde a CF-1988, há garantia total de pluralidade de formações, vocações e até mesmo de afiliações políticas, partidárias e ideológicas dentro do Estado nacional, bem como garantia plena do exercício de funções movidas pelo interesse público universal e sob controle tanto estatal-burocrático (Lei nº 8.112/1990 e controles interno e externo dos atos e procedimentos de servidores e organizações) como controle social direto, por meio, por exemplo, da Lei de Acesso a Informações (LAI), entre outros mecanismos (3).

Por sua vez, os demais atributos intrínsecos da ocupação no setor público, quais sejam: a remuneração adequada e previsível ao longo do ciclo laboral, a qualificação elevada e a capacitação permanente no âmbito das funções precípuas dos respectivos cargos e organizações, a cooperação interpessoal e intra/inter organizacional como critério de atuação e método primordial de trabalho no setor público, todos eles, derivam precisamente do atributo primordial da estabilidade do corpo funcional, e serão oportunamente tratados nos demais artigos dessa série.

Em suma: hoje em dia, por meio das entidades representativas dos servidores, o Brasil possui o mais completo estoque potencial de conhecimentos sobre as estruturas e as formas de funcionamento da administração pública federal brasileira. Seja por meio de estudos técnicos que elas produzem, seja simplesmente pelo conhecimento tácito que os servidores possuem sobre o cotidiano de virtudes e problemas do Estado, o fato é que somos nós, os próprios servidores públicos, os que mais têm condições teóricas e práticas de produzir a melhor explicação situacional possível e as mais adequadas e aderentes proposições ou soluções para os problemas de desenho organizacional e de desempenho institucional do governo federal.

Por isso, uma verdadeira política nacional de recursos humanos no setor público deve ser capaz de promover e incentivar a profissionalização da burocracia pública a partir do conceito de ciclo laboral no setor público, algo que envolve as seguintes etapas interligadas organicamente: i) seleção; ii) capacitação; iii) alocação; iv) remuneração; v) progressão; vi) aposentação. Ademais, deve atentar para os fatores que realmente garantem ganhos de produtividade e de desempenho institucional no Setor Público: i) ambiente de trabalho; ii) incentivos não pecuniários e técnicas organizacionais; iii) trilhas de capacitação permanente; iv) critérios para avaliação e progressão funcional; v) remuneração adequada e previsível; vi) fundamentos da estabilidade e critérios justos para demissão; vii) condições de realização dinâmica e retroalimentação sistêmica entre as dimensões citadas.

Este é o escopo necessário para uma discussão qualificada acerca do ciclo laboral no setor público e suas relações com os temas e objetivos da produtividade e do desempenho institucional do Estado brasileiro no século XXI. Em outras palavras, o aumento de produtividade e a melhoria de desempenho institucional agregado do setor público será resultado desse trabalho difícil, mas necessário, de profissionalização da burocracia pública ao longo do tempo, para a qual importa, sobremaneira, a estabilidade funcional dos servidores nos respectivos cargos públicos. Não há, portanto, choque de gestão algum que supere ou substitua o acima indicado.

p dir=”ltr” style=””>1José Celso Cardoso Jr. é Doutor em Desenvolvimento pelo IE-Unicamp, desde 1997 é Técnico de Planejamento e Pesquisa do IPEA. Atualmente, exerce a função de Presidente da Afipea-Sindical e nessa condição escreve esse texto.

 

2  Ainda a respeito do tema, ver para uma fundamentação histórica e teórica mais robusta, Weber (s/d) e Elias (2011).

3 Marcos legais que passaram a sustentar iniciativas de participação pró-transparência no governo brasileiro: i) Lei Complementar nº 131/2009, que altera a Lei de Responsabilidade Fiscal; ii) Lei de Acesso a Informação (Lei nº 12.527/ 2011); iii) Decreto nº 7.507/2011, voltado a transferências intergovernamentais; iv) Política federal de Dados Abertos (Decreto  nº 8.777/2016). Além dessas, no campo da transparência e do combate à corrupção, houve empoderamento dos órgãos de fiscalização e controle, que ganharam autonomia operacional, e leis sem as quais seria impossível identificar, denunciar e punir assaltos aos cofres públicos, assim como realizar operações como a Lava Jato, consórcio entre Ministério Público Federal, Justiça Federal e Polícia Federal. Estão entre essas leis, todas incorporadas ao ordenamento jurídico nos últimos dez anos, as seguintes: i) Lei da Transparência (Lei Complementar nº 131/2009, conhecida como Lei Capiberibe); ii) Lei de Captação de Sufrágio, que aceita a evidência do dolo para efeito de cassação de registro e de mandato (Lei nº 12.034/2009); iii) Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar nº 135/2010); iv) Atualização da Lei de Combate à Lavagem de Dinheiro (Lei nº 12.683/2011); v) Lei de Conflito de Interesses (Lei nº 12.813/2013); vi) Lei de Responsabilização da Pessoa Jurídica, ou Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013); vii) Lei da Delação Premiada, ou a lei que trata de Organizações Criminosas (Lei nº 12.850/2013); e viii) Emenda Constitucional do voto aberto na cassação de mandatos e apreciação de vetos (E. C. nº 76/2013). A respeito, ver análises em cartilhas e documentos do DIAP, Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar.

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