Servidora especialista em retrato afirma que a fotografia é um “fazer” das artes visuais
“A fotografia sempre esteve presente na minha vida, aliás, tal como na vida de muitos da minha geração, que têm em comum a iniciação neste campo durante a adolescência, e uso de uma câmera analógica emprestada de um familiar próximo.” Durante alguns anos, a servidora do TRT-4, Luciana Mena Barreto, apenas “flertou” com a fotografia, numa relação descompromissada e sem um objetivo específico. A mudança veio em 2004, quando “o mero flerte com a fotografia se transformou em algo mais sério. Nessa época, depois de receber alguns ensinamentos básicos sobre a mecânica e a química envolvidas na foto, passei a praticá-la indo, no mínimo, uma vez por semana aos teatros de Porto Alegre, onde fazia a documentação fotográfica (fotografia de cena)”, relembra.
Após cinco anos “vivenciando esse mundo de espetáculos através do olho de vidro”, a fotógrafa se dedicou aos livros para compreender outras dimensões, especialmente os temas relacionados a teoria fotográfica e a filosofia da arte. “A partir daí, minhas referências sobre fotografia mudaram radicalmente, e passei a entender a fotografia não como uma finalidade em si mesma, mas como um ‘fazer’ no campo das artes visuais”, explica.
O “fazer” de Luciana é fundamentalmente documental e o interesse atual da servidora na fotografia “vincula-se à infinidade de possibilidades que ela oferece na produção de imagens no campo das artes visuais”, afirma. Retratos, autorretratos, histórias familiares, questões de identidades e uma composição nada convencional são algumas marcas do trabalho da fotógrafa que valoriza mais a “capacidade de ser afetado pelo mundo (que está sempre em mutação) e de atualizar-se, do que sua capacidade de criar algo único e exclusivo, tal como criavam os artistas modernos do século dezenove.”
Transbiografia
Ao acaso ou a partir de uma motivação, as séries documentais de Luciana apresentam aspectos únicos, como o projeto “Transbiografia”, iniciado em 2013, após o contato com um retrato de sua mãe ainda menina, em torno dos 12 anos de idade quando residia no interior da Bahia.
Retrato da mãe da fotógrafa que motivou a série “Transbiografia”
“Na fotografia, a menina está à frente de um pano branco visivelmente improvisado para dar destaque à figura. Contudo, no enquadramento, a imagem mostra o que excede o fundo branco, deixando aparecer o entorno. O procedimento adotado pelo fotógrafo – usar um pano de fundo – em vez de neutralizar o campo da imagem, isolando a pessoa retratada, torna-se um elemento da fotografia. Mostra o lugar onde a fotografia foi feita, em vez de omitir revela, em vez de velar a parede e o chão, sua rusticidade e textura. É esta a magia da foto, pois mostra a tentativa frustrada de promover o deslocamento da pessoa retratada, de um determinado espaço identitário para um lugar neutro, limpo de acidentes ou de elementos significativos, isento e sem marcas. Um território idealizado em que é possível adotar identidades plasmadas no retrato como sua. No retrato em questão, não é a a utilização de “pano de fundo” na construção da identidade, que chama atenção, mas a existência de uma foto tão antiga que denuncia, ainda que involuntariamente, esta estratégia”, explica.
A partir do retrato surgiu o projeto que fez Luciana voltar a quatro cidades onde a mãe residiu, em busca do local onde a fotografia foi feita, há mais de 60 anos. “Carregando algumas memórias de histórias contadas na família, busquei indícios que me levaram ao ponto geográfico. As cidades de Santo Amaro da Purificação, Salvador, Caravelas, Condeúba, Caetité e Brumado integraram o percurso.”
Questões identitárias são destacadas na narrativa que surgiu a partir de memórias familiares
Um dos cenários onde a fotógrafa foi buscar os lugares de memória da mãe no interior da Bahia
Casa
Outro projeto surgiu após uma caminhada aleatória pelas ruas da cidade de Porto Alegre e um terreno chamou a atenção de Luciana. “Lá havia escombros da edificação de uma casa, um espaço aparentemente abandonado, situado entre outras duas edificações: um restaurante e uma escola de educação infantil.
A casa em ruínas, descaracterizada, não era, contudo, uma massa amorfa. Seus restos materiais ainda davam as pistas do que teria sido um dia. Era evidente, de acordo com que dita meu condicionamento à vida compartimentada, que houve ali, igualmente, um espaço dividido em compartimentos destinado à habitação humana. Não resisti ao impulso de nomear os cômodos durante a ação escrevendo com tinta spray nas paredes que ainda existiam ali as palavras teto, sala, cozinha…”, relata.
O local onde seria a sala foi identificado pela fotógrafa durante a intervenção artística
A intervenção artística teve um encontro inesperado com o morador do local que virou personagem da narrativa intitulada “Casa”, de 2010 que será exposta ainda esse ano no Centro Municipal de Cultura da Prefeitura de Porto Alegre. “Após algum tempo percorrendo os escombros, fui sendo tomada por um mal estar, que se avolumava na medida em que ia encontrando pistas de que eu estava invadindo um lugar. Havia um varal repleto de roupas e um cão preso a uma corrente. No decorrer do processo, tive a oportunidade de verificar que, nada obstante o aparente caos, os escombros ocultavam outro espaço erigido como habitação impregnada de organização doméstica. Logo encontrei o homem que ali habitava com seu cão.”
Outro cenário encontrado pela fotógrafa durante a visita ao terreno
Morador tornou-se personagem da narrativa “Casa”
Detalhes dos acessórios usados pelo morador que apresentam características de sua identidade
Apesar das narrativas em construção ou dos projetos finalizados divulgados em seu site, a fotógrafa explica que gosta de experimentar e cita o fotógrafo Man Ray como sua principal referência “que prefiro a Cartier Bresson, por exemplo. Não acredito na influente ideia do ‘instante decisivo’. Admiro e tenho como referência o trabalho de muitos artistas, mas não sei qual seria o meu próprio ‘estilo’. Creio que ainda estou construindo meu repertório autoral.”
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